Como profissional com certificação internacional em coaching de saúde, professora universitária e pesquisadora, venho me posicionar sobre a reportagem do Fantástico sobre Coaching levada ao ar em 10/01/2020.
A reportagem mostrou um aumento no número e demanda por serviços de coaching no Brasil. Isso é fato. Mostrou que há uma ampla gama de especialidades e de ofertas de serviço com promessas infundadas como reprogramar crenças de maneira rápida ou transformar respostas emocionais em poucos dias. Em contraponto, foi ouvida a opinião de profissionais de saúde – médicos, nutricionistas, psicólogos e mesmo neurocientistas – sobre o desafio que é promover mudanças de hábito. Não se trata de dias, mas de meses. Não se trata de mágica, mas o resultado reflete um trabalho aprofundado baseado em práticas bem estabelecidas.
É fato que em todas as áreas há bons profissionais e outros sem preparo adequado que oferecem serviços sem qualidade. O fato de haver médicos ou advogados incompetentes, por exemplo, não leva as pessoas a perderem credibilidade pela Medicina ou pelo Direito. O mesmo acontece em Coaching. Como em outras profissões, uma formação qualificada e fundamentada em métodos universalmente aceitos, publicados e estudados é essencial. Não se trata de apostar em métodos inventados ou crenças pessoais.
Coaching é um processo fundamentado em técnicas descritas em inúmeras publicações, onde se estabelece uma parceria entre coach e cliente para promoção de mudança de comportamento. Esta atuação profissional é regida por um código de ética – estabelecido pela ICF (International Coach Federation) – aceito no mundo todo. Este código de ética serve para definir padrões de conduta consistentes com os valores essenciais e princípios éticos da ICF, orientar a reflexão ética, educação e tomada de decisão, e fornecer base para o treinamento em programas credenciados (1). É essa conduta ética que motiva o cliente a implementar mudanças consistentes com seus objetivos. Não se trata de acreditar que vai dar certo, mas de mobilizar capacidades internas existentes para mudar comportamentos de maneira alinhada aos seus valores.
Coaching de Saúde (do inglês Health Coaching), área em que atuo há mais de 6 anos, é um processo de promoção de saúde e bem-estar baseado em técnicas de motivação, escuta ativa e planejamento. Para atuar como coach de saúde, um profissional de saúde – com ensino superior completo na área – deve passar por formação e prática supervisionada durante meses. Nos Estados Unidos esta atuação é certificada por um conselho específico, reconhecido mundialmente, o National Board for Health and Wellness Coaches (NBHWC), que é equivalente aos conselhos profissionais como o Conselho Regional de Medicina (CRM) e conselhos de outros profissionais da saúde. Este conselho define o escopo da prática de coaching de saúde, isto é, o que o coach pode e o que não pode fazer, e tem também tem seu próprio código de ética, que define padrões de profissionalismo na conduta do coach. Para ser certificado pelo NBHWC, o coach de saúde deve ter completado um mínimo de horas de atendimento após a conclusão de um curso de formação devidamente credenciado e precisa passar por um exame rigoroso de conteúdo onde são avaliadas competências teóricas e práticas de coaching, escopo de atuação e conduta ética, entre outros. Hoje no Brasil somos três coaches de saúde certificados pelo NBHWC.
Segundo o NBHWC, “coaches de saúde e bem-estar trabalham com indivíduos e grupos em um processo centrado no cliente para facilitar e capacitar o cliente a desenvolver e atingir metas autodeterminadas relacionadas à saúde e ao bem-estar. Apoiam os clientes na mobilização de forças internas e recursos externos e no desenvolvimento de estratégias de autogestão para fazer mudanças de comportamento e estilo de vida saudáveis e sustentáveis”. Coaches de saúde e bem-estar não diagnosticam, prescrevem tratamentos ou fornecem intervenções terapêuticas psicológicas, mas atuam como parceiros e facilitadores, apoiando seus clientes na realização de metas de saúde e mudanças comportamentais baseadas em metas estabelecidos pelos próprios clientes e consistentes com os planos de tratamento prescritos por profissionais de saúde, quando houver. “Coaches de saúde auxiliam os clientes a usar suas percepções, pontos fortes e recursos pessoais, a definir metas, etapas de ação e a assumir responsabilidade para mudança para um estilo de vida saudável.”(2)
O coach de saúde atua de maneira interdisciplinar, complementando o trabalho de médicos, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e educadores físicos para promover a saúde integral do cliente. A principal diferença entre a abordagem do coach e a estratégia convencional de profissionais de saúde é uma atitude de parceria ao invés da postura de especialista. Enquanto o especialista educa, define a agenda e tem as respostas, o coach extrai do cliente as soluções para suas questões específicas, com escolha pelo cliente de ações consistentes com suas metas e suas limitações.
O processo se inicia a partir de uma auto-avaliação de áreas de saúde e elaboração de uma visão ideal de saúde e bem-estar pelo cliente. Em seguida, o cliente escolhe uma área de prioridade – alimentação, atividade física, sono, gerenciamento de estresse, qualidade das relações pessoais – e monta com o coach um planejamento com metas de longo prazo, objetivos SMART (específicos, mensuráveis, baseados em ação, realistas e com prazos definidos) para implementar mudanças de comportamento de acordo com seu estado de prontidão e engajamento. Este processo leva alguns meses e capacita o cliente a assumir um papel de responsabilidade sobre a própria saúde, desenvolvendo competências de auto-cuidado e de auto-eficácia.
É sabido e aceito que mudanças de hábitos e estilo de vida estão associadas à prevenção de doenças crônicas e à longevidade, no entanto a implementação e a manutenção de hábitos saudáveis é um desafio, tanto quem é cliente ou paciente quanto para os profissionais de saúde. Intervenções de coaching de saúde têm trazido benefícios como maior aderência a tratamentos e melhores resultados clínicos. Nos Estados Unidos e Europa coaches de saúde fazem parte de equipes multidisciplinares na atenção primária em saúde, em clinicas e hospitais. No Brasil ainda estamos engatinhando, mas a inserção de coaches de saúde nos principais hospitais de São Paulo já acontece.
Coaching de saúde é baseado em evidências. Inúmeras publicações científicas (mais de 140 artigos indexados no Pubmed só em 2020) relatam o potencial de processos de coaching para prevenção e melhora de condições crônicas como diabetes e doenças cardiovasculares, redução de sintomas de estresse e ansiedade, gerenciamento de dor crônica e melhora de qualidade de vida em pacientes com câncer. Resumos destas evidências aparecem em revisões sistemáticas e em compêndios revisados periodicamente (3), onde são avaliados não só os desfechos mas a qualidade das intervenções realizadas.
Sim, há muitos charlatões oferecendo serviços e treinamentos de coaching. Em saúde, é comum chamar de coaching todo aconselhamento fora da interação médico–paciente, uma atitude que prejudica a credibilidade dos profissionais com formação adequada, certificação internacional e seriedade. Vou além: promover o descrédito ao trabalho de coaches de saúde é comprometer o impacto positivo – necessário e de baixo custo – sobre a carga de doenças crônicas que assola a população, quando está claro que a abordagem tradicional de saúde não é totalmente eficaz no apoio à mudança de comportamento de saúde em uma era de doenças crônicas.
Seria interessante e justo o programa do Fantástico ter apresentado os benefícios do coaching em promoção de saúde e mostrado ao público como é possível a escolha de um coach profissional ou de um curso sólido de formação em coaching de saúde, através de pesquisa minuciosa sobre a seriedade dos mesmos.
No atual momento de sindemia, onde a epidemia Covid-19 se sobrepõe à epidemia de doenças crônicas aumentando a carga da doença na população, a atuação de profissionais capazes de promover hábitos de estilo de vida para aumento de saúde e bem-estar é mais do que importante, é necessária.
Maria Carolina Tuma, PhD, NBC-HWC, Professora na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Docente de Pós-Graduação do Hospital Israelita Albert Einstein
1. https://coachingfederation.org/code-of-ethics
2. https://nbhwc.org/scope-of-practice/
3. Sforzo et al., 2020. Am J Lifestyle Med. 14(2):155-168. doi: 10.1177/1559827619850489. eCollection 2020 Mar-Apr.
4. Gierisch et al., 2017. The Effectiveness of Health Coaching [Internet]. Washington (DC): Department of Veterans Affairs (US); 2017 Apr. VA Evidence-based Synthesis Program Reports.